terça-feira, 27 de março de 2018

O mundo era perfeito

Quando eu era criança, eu achava que o mundo era perfeito. Não que eu tivesse nascido em berço de ouro, muito pelo contrário. E nem que eu tivesse saúde perfeita, que também não era o caso. Não estou dizendo que eu achava o mundo perfeito por que perfeita era minha vida, como se poderia imaginar. Mas eu achava que o mundo era perfeito porque ele funcionava -- assim eu supunha -- tal como deveria: de forma justa e eficiente.

Eu achava que o crime não compensa. O vilão, como nos filmes, era sempre pego no final do último capítulo, quando todas as tramas se desfazem, quando os mocinhos provam sua inocência, os verdadeiros culpados são algemados e vão para a cadeia, para nunca mais saírem. No fim, tudo aquilo que você torcia durante o filme todo virava realidade.

Eu achava que uma consulta médica poderia ser com qualquer médico. Afinal, todos sabiam a mesma coisa. Se não tinham estudado na mesma escola de medicina, usaram pelo menos o mesmo livro, como minha prima e eu, que usávamos o mesmo livro de português e matemática mas em escolas bem longe uma da outra (para meus padrões da época, pois eram em bairros diferentes). Eu imaginava que todo médico tinha uma grande tabela de duas colunas na cabeça: na primeira, os sintomas; na segunda, o que receitar -- e que funcionava! Era uma lista longa, que catalogava todas as possíveis doenças, sem deixar nada de fora. Esta tabela havia de ser universal, todos eles a sabiam de trás para frente, mais ou menos no espírito das tabuadas que eu era obrigado a decorar. Erro médico era uma coisa inconcebível para mim.

Eu tinha certeza que o presidente de uma empresa sabia de tudo o que se passava na empresa dele, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Ele sabia o nome de todos os funcionários, sabia de todos os problemas. Ele pessoalmente cuidava de supervisionar todos os detalhes da produção, de revisar todos os rótulos, todos os manuais. Ele tirava um dia da semana só para escutar todas as ligações feitas para o teleatendimento. Ele era uma espécie de divindade corporativa, que tudo sabia, tudo elucidava, tudo via, e fazia uso deste poder com um único objetivo: fazer o melhor produto do mundo para seus consumidores. De todos os presidentes, eu sonhava em conhecer o presidente do Toddyinho (como eu gostava daquilo...)

Eu tinha certeza que nunca ia deixar de brincar de pique. Qualquer um: pique-pega, pique-bandeira, pique-esconde, pique-parede, pique-cola-três-vezes, .... Eu brincava disto o tempo todo. Um dia, todos os meus amigos e eu juramos que continuaríamos brincando de pique quando a gente crescesse. Quando tivéssemos filhos, eles também entrariam na brincadeira (mas seriam "café-com-leite", como chamávamos aqueles que queriam entrar no pique mas ainda estavam num estágio iniciante da arte de não ser pego). Como a gente teria muito dinheiro (ninguém se imaginava pagando as prestações de casa ou do carro), construiríamos um prédio cheio de passagens secretas e armadilhas, passando o pique de rua para um outro patamar. Nós éramos visionários do conceito atual de "brinquedão", aqueles dos shoppings cheio de túneis, porém incrementados com conceitos importados dos filmes do Indiana Jones.

Para mim, os cientistas tinham respostas para tudo. E quando não tinham, era questão de pensar um pouco e... Eureca! -- já tinham a resposta. Saber toda a Teoria do Universo era questão de tempo, se é que já não a dominavam. Todos eles viviam em laboratórios, cheios de tubos de ensaio, de cabelo despenteado e olhos esbugalhados. Eles eram todos iguais ao Dr. Brow, do "De Volta para o Futuro". Ser cientista era o melhor emprego do mundo!

Eu achava que não havia motivo para se ter fome no mundo, exceto para o jejum do exame de sangue. Que não havia motivo para se faltar trabalho para quem quer trabalhar. Eu não sabia que as guerras ainda aconteciam. Aliás, nem sabia sequer que não houve um ano de trégua na história da humanidade. Eu achava que fazer pessoas de escravos fosse coisa inventada por ancestrais nossos que, por um infeliz fortuito, nasceram mentalmente perturbados e mais fortes do que os outros. Eu achava que as pessoas eram confiáveis e honestas (menos alguns motoristas de Kombi, de quem a minha mãe alertava para não pegar balas se oferecidas). Que tudo que eu emprestasse seria devolvido. Que tudo que eu contasse em segredo, assim ficaria até segunda ordem.

Eu pensava que o amor era uma coisa fácil, quase trivial. Era assim: você gostava dela, ela gostava de você. Você demorava um pouco para falar (pelo menos eu julgava que eu demoraria, devido a minha timidez), mas quando se declarasse, tudo dava certo. Enfim, você descobriria que era recíproco. Vocês se casariam e seriam felizes para sempre. E que isto acontecia o tempo todo, com todo mundo. Por que seria diferente?

Eu já sabia que as pessoas não eram eternas. Mas isto não abalou minha noção de mundo perfeito. Logo cedo, li em algum lugar um texto que comparava a morte a uma grande festa: no início, quando chegamos, estamos empolgados e tudo é descoberta. O meio da festa é o ápice, pois já nos entrosamos com todos e estamos no melhor da brincadeira. No fim, estamos cansados, os calçados machucam o pé, queremos voltar para casa e tomar logo um banho e dormir, e não nos importamos então de ir embora mais cedo, antes de outros que querem aproveitar mais, ou mesmo vendo que há gente nova chegando... o tempo em que estivemos na festa já foi de bom tamanho e, então, nos despedíamos de todos. Era exatamente assim que eu me sentia nas festinhas de aniversário dos meus amigos. E ainda levava para casa no final um pedaço do bolo, um monte de balinhas de açúcar, e um balão para jogar vôlei sozinho em casa no dia seguinte! Esta analogia parecia se encaixar com a noção de justiça que eu tinha do mundo.

Eu achava isso tudo. E continuo, em verdade, achando. Apenas acho de um jeito diferente agora. O que antes era uma convicção ingênua de que este era o estado das coisas, agora deu lugar a uma convicção de que é possível um dia ser assim, e que a evidência para isto é que tudo já foi muito pior, e portanto estamos em processo de contínuo aprimoramento. E acho bom viver pensando desta maneira.

Tocando neste assunto...

Estes dias ouvi uma metáfora, que é mais ou menos assim... um dia, um homem estava com seu filho, precisando trabalhar de casa. Ele ficara com o filho, que não pôde ir à escola por estar febril. Mas a enfermidade não deixava o menino quieto. Muito pelo contrário! Seu pai já não sabia como fazer para trabalhar, sendo interrompido pelo garoto a cada tantos minutos. Perdendo um pouco a paciência, teve uma ideia. Foi ao quarto e retirou da moldura uma tela de um quadro grande pendurada que o garoto vivia tentando pegar, de uma imagem de um mapa-múndi. O pai tomou uma tesoura e cortou o mapa em pedacinhos. Voltou a sala e disse ao menino que ficasse ali, quieto, brincando de montar o quebra-cabeça improvisado. Disse para voltar ao escritório do papai somente quando terminasse de montar o mapa. O menino adorou, e prontamente se pôs a tentar resolver o quebra-cabeça.

O pai pensou que foi uma ótima ideia. Afinal, o garoto era muito novo e não conhecia o desenho do mapa-múndi. Fatalmente, isto distrairia o garoto o dia inteiro, de modo que o pai cumpriria o prometido no trabalho. Todo mundo que já tentou montar um quebra-cabeça de razoável tamanho sabe que, sem saber exatamente como deve ser a imagem final, a tarefa se torna muito mais difícil. Pasmo ficou o pai depois que, dentro de poucos minutos, o filho retornou e disse: "Acabei!".

O pai não acreditou. Correu à sala, e de fato, lá estava o mapa montado. "Mas como?!", indagou o pai ao garoto, que lhe respondeu com um sorriso de canto: "Simples! Eu reparei que atrás do mapa havia um desenho de um rosto grande de um homem. Assim, pensei em resolver o quebra-cabeça não tentando montar o mapa, mas tentando montar a imagem do homem, com as peças viradas. Quando terminei de consertar o homem, olhei para o mundo e vi que ele tinha ficado perfeito!"



O mundo era perfeito

Quando eu era criança, eu achava que o mundo era perfeito. Não que eu tivesse nascido em berço de ouro, muito pelo contrário. E nem que eu t...