Era meados de julho de 1988. A minha mãe se preparava no quarto para sair enquanto eu, já pronto, pacientemente a esperava na sala. Era dia de bingo na minha escola, evento em que todas as mães eram literalmente convocadas a irem com seus filhos. O motivo era a festa Julina que estava chegando. Todos os anos, a escola promovia uma série de eventos, na qual o bingo estava incluído, para arrecadar fundos suficientes para uma comemoração de festa Julina. Eu, particularmente, não achava graça no bingo. Mas adorava a festa e, portanto, o bingo era uma chatice necessária. E lá fomos nós.
Após o término do bingo, ao levantarmos todos para irmos embora, as crianças começaram a jogar uns nos outros os grãos de milho que estávamos usando para marcar nas cartelas. Viravam nas mãos o pote com os grãos e jogavam para todo lado. Eu achei o máximo, como qualquer criança (ou, mais precisamente, qualquer menino). Enchi minha mão de milho e, com toda força, VAPT... joguei. Não gosto nem de me lembrar dos momentos que se seguiram.
Infelizmente, a minha rajada de milho encontrou diretamente o olho direito do Rodnei. Após se recuperar do incômodo que aquelas dezenas de grãozinhos de milho lhe trouxeram, ele se virou para mim e, num tom ameaçador, gritou de onde se encontrava, sentado ao lado de sua mãe alguns metros afastado da minha mesa:
-- Rapaz, você não sabe a encrenca em que se meteu. Segunda-feira eu te pego! Na entrada, pois não vou aguentar ter que esperar até chegar o horário da saída!
Rodnei era o mais temido dos garotos da quarta-série. Ele tinha cara de mau, era mais forte que os demais, maior e gostava de brigar na saída. Ele era o tipo de cara que chegava e acabava com a brincadeira da moçada mais nova por puro prazer, só para se sentir o bonzão. Sempre que eu via os filmes do Van Damme, imaginava que o chefão do mau quando criança era como o Rodnei. De sobra, confesso ainda que imaginava que o Van Damme deveria ser, assim, como eu. Embora estivesse muito errado na segunda colocação, na primeira certamente eu estava certo.
O meu melhor amigo na época, que se sentou ao meu lado no bingo, era um dos caras mais fortes da escola. Para terem uma idéia, atualmente ele trabalha como segurança particular, ou algo do ramo. Como meu melhor amigo, logo pensei, talvez ele comprasse a briga e me tirasse desta. Aliviei-me um pouco quando ele rapidamente gritou de volta ao Rodnei:
-- Eu ?!
Foi o que ele disse. Ele estava do meu lado e achou que o Rodnei havia o ameaçado do nada. Não era exatamente o que eu pensei que ele diria.
-- Não -- retrucou Rodnei. Este magrinho que está do seu lado, que me jogou o milho!
-- Ufa! Graças a Deus!, exclamou o meu amigo.
Se ele que era ele havia se sentido aliviado em não ser o objeto da ameaça do Rodnei, era o meu verdadeiro fim.
O fim de semana passou rápido demais. Segunda de manhã, enquanto via minha mãe aprontando as coisas para ela me levar à escola, eu disse a ela:
-- Mãe, estou com dor de garganta.
Plano infalível. Minha mãe nunca me deixava ir na escola com dor de garganta. Tive que gargarejar sal com vinagre o dia todo, mas valeu à pena. Obviamente, não percebi que o plano funcionaria apenas a curto-prazo. Minha mãe logo notou que havia algo de errado com aquela dor de garganta que nunca sarava. Ainda mais quando o médico constatou que não havia nada de errado com a minha garganta.
-- Fabiano, o que está acontecendo? Por que você não quer ir na escola?
Foi aí que eu contei para ela o ocorrido. Ela me repreendeu por não ter contado antes o problema e me disse para eu ficar despreocupado, que ela iria conversar com este tal de Rodnei.
No dia seguinte, chegamos mais cedo ao colégio, para esperar ele chegar. Depois de algum tempo, lá vem ele, descendo a rua do colégio, rodando peão. Enquanto ele se aproximava, não podia deixar de pensar que era questão de tempo até a ponta fina daquele peão estivesse cravada no meu pé. E isto porque eu estava usando Kichute, pois caso contrário, o peão todo deveria atravessar o meu pé. Quando ele se aproximou, acompanhado de sua mãe que o trazia à escola, minha mãe os abordou:
-- Bom dia senhora, a senhora é a mãe do Rodnei?
-- Sim, sou...
-- Eu sou a mãe do Fabiano e aconteceu que na última sexta... -- e contou tudo.
-- Rodnei! - gritou ela com o filho -- você disse que bateria no garoto?
-- Não mãe, foi só na hora que falei isso. Eu não ia fazer isso não!
-- Pois ai de você se a mãe dele me procurar depois dizendo que você encostou o dedo nele. Você vai apanhar de correia!
Minha mãe agradeceu a compreensão da senhora, me deixou no colégio, e entramos para a escola, Rodnei e eu. No início, eu evitava o caminho quando via o Rodnei dentro da escola. Depois, vendo que ele realmente havia se esquecido do incidente, perdi o receio.
Esta estória toda sempre me vem à mente quando ouço casos de barbáries na TV. Logo penso como o mundo seria melhor se os problemas fossem resolvidos assim como o meu foi. Imagino um delegado de polícia dizendo aos pais de um bandido:
-- O seu filho é suspeito de assaltar um jovem a mão armada!
-- Filho, não acredito, você está maluco? Senhor -- diz o pai, voltando-se para o delegado -- pode ter certeza que isto não vai ocorrer mais. Ou então Fulano -- voltando-se para o filho -- você vai apanhar de correia!
-- Não pai, correia não!
E pronto, o problema acabasse. Não seria tão mais simples? Como não é assim que as coisas funcionam, e dor de garganta não resolve o problema por muito tempo, o jeito é prestar mais atenção aonde se joga o milho. Ou ser, de fato, um Van Damme.
Tocando neste assunto...
Nas últimas férias, passamos alguns dias num hotel do interior do estado do Rio, localizado numa área bem afastada da cidade. Ao chegar lá, logo percebemos que havia uma excursão de senhores e senhoras no hotel, algo como uma programação focada na terceira idade. O hotel promoveu, numa data noite, um bingo (claro, seria sucesso garantido). Como não se tinha muita coisa para fazer por lá naquela noite além do bingo, minha e esposa e eu resolvemos atender ao evento.
Eu, que nunca ganhei nada em bingo, ganhei os três primeiros prêmios. A minha filha achava o máximo toda vez que eu gritava "Bingo!". Como era a primeira vez que ela presenciava um, ela chegou a achar que a brincadeira era esta mesma: todo mundo reunido vendo o pai dela gritar bingo e levar o prêmio. Resolvi deixar para lá e desistimos do bingo, pois senti que eu ia estragar a noite daquelas senhoras.
Desde aquele incidente com o Rodnei, eu nunca mais tinha voltado a jogar bingo. Acho que naquela noite foi sorte acumulada.
segunda-feira, 30 de maio de 2011
segunda-feira, 23 de maio de 2011
O tempo passa, o tempo voa!...
Nem parece, mas faz hoje um ano desde a minha primeira postagem (nota para os distraídos: isto é uma outra maneira de dizer que o blog está comemorando o seu primeiro aniversário). Eu não iria escrever nada, mas devido ao aniversário e toda aquela estória de "não passar em branco", achei que deveria escrever alguma coisa.
Bom, já que comecei, farei uma pequena consideração sobre o aniversário. Não que isto seja em si grande coisa, mas visa atender o humilde propósito de contar uma curiosidade. Há 365 dias atrás eu estava andando de carro pensando na vida (não é à toa que já dei umas batidas nas traseiras por aí) e cheguei à conclusão de duas coisas importantes.
Primeiro, que a minha professora de português da quinta-série, professora Cláudia, estava certa. Se eu quisesse melhorar na comunicação, tanto escrita quanto falada, o caminho era treinar a escrita. Como eu estava voltando da universidade com um monte de revisões por fazer num texto de um artigo, concluí que eu estava errado nestes 20 anos em não procurar exercitar a escrita.
Além disso, ponderei que se eu morresse ali, naquele momento, o que seria da minha filha pequena, sem aquelas estórias que os filhos se cansam de ouvir dos pais? Estou me referindo sobre aquelas estórias incríveis (do ponto de vista dos pais) sobre como eles eram os tais na juventude. Ou seja, aquelas estórias todas distorcidas em relação aos reais acontecimentos. Ela ficaria além de sem herança, sem estas estórias para contarem a seus eventuais filhos (aquelas que começam com "o seu avô contava que..." que, para os netos, são como verdade absoluta). Achei que um blog cumpriria bem as duas preocupações. Já o problema da herança ainda está em aberto, pois a solução é mais complicada.
Tocando neste assunto...
Gostaria de agradecer a todos vocês pela leitura das postagens. Nunca imaginei que, além das minhas professoras que eram obrigadas a ler o que eu escrevia, alguém o faria por livre e espontânea vontade. Alguns, chegam ao cúmulo de repassar o texto a frente, sob risco de perderem os (per)seguidores virtuais (ou será que é justamente este o objetivo?!). Para mim, é motivo de muita honra. Agradeço pelas palavras de incentivo que às vezes chegam. Quando estou sem muita idéia sobre o que escrever, um comentário positivo parece que vem com uma anexada.
Bom, já que comecei, farei uma pequena consideração sobre o aniversário. Não que isto seja em si grande coisa, mas visa atender o humilde propósito de contar uma curiosidade. Há 365 dias atrás eu estava andando de carro pensando na vida (não é à toa que já dei umas batidas nas traseiras por aí) e cheguei à conclusão de duas coisas importantes.
Primeiro, que a minha professora de português da quinta-série, professora Cláudia, estava certa. Se eu quisesse melhorar na comunicação, tanto escrita quanto falada, o caminho era treinar a escrita. Como eu estava voltando da universidade com um monte de revisões por fazer num texto de um artigo, concluí que eu estava errado nestes 20 anos em não procurar exercitar a escrita.
Além disso, ponderei que se eu morresse ali, naquele momento, o que seria da minha filha pequena, sem aquelas estórias que os filhos se cansam de ouvir dos pais? Estou me referindo sobre aquelas estórias incríveis (do ponto de vista dos pais) sobre como eles eram os tais na juventude. Ou seja, aquelas estórias todas distorcidas em relação aos reais acontecimentos. Ela ficaria além de sem herança, sem estas estórias para contarem a seus eventuais filhos (aquelas que começam com "o seu avô contava que..." que, para os netos, são como verdade absoluta). Achei que um blog cumpriria bem as duas preocupações. Já o problema da herança ainda está em aberto, pois a solução é mais complicada.
Tocando neste assunto...
Gostaria de agradecer a todos vocês pela leitura das postagens. Nunca imaginei que, além das minhas professoras que eram obrigadas a ler o que eu escrevia, alguém o faria por livre e espontânea vontade. Alguns, chegam ao cúmulo de repassar o texto a frente, sob risco de perderem os (per)seguidores virtuais (ou será que é justamente este o objetivo?!). Para mim, é motivo de muita honra. Agradeço pelas palavras de incentivo que às vezes chegam. Quando estou sem muita idéia sobre o que escrever, um comentário positivo parece que vem com uma anexada.
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Lista de compras do supermercado
Eu sempre vou ao mesmo supermercado. E a causa fundamental não é o preço, o atendimento com cortesia, a limpeza das gôndolas ou a localização privilegiada. Eu retorno lá porque sempre sei onde encontrar cada produto que esteja procurando. Já decorei a organização dos produtos, que nunca muda. Eu não sei quanto a vocês, mas eu detesto ficar procurando um produto mercado a fora. Se eu tiver que fazê-lo, fico me perguntando durante a busca: "Será que daria para ficar sem isso até a próxima compra?", ou "Se eu deixasse de levar este item, será que a minha esposa perceberia?". O ideal seria que as respostas fossem “sim” e “não”. E, quase felizmente, é o que elas de fato são. O problema é que não respectivamente.
O chato de buscar um produto pelo mercado é que esta tarefa exige algum instinto natural para descobrir onde ele está -- o que realmente estou longe de possuir. Aquelas placas com a indicação da seção de compras de cada corredor são de uma tamanha inutilidade. Confesso que em parte a culpa disso é minha, dada a minha ignorância de vários termos técnicos de itens do dia-a-dia. Por exemplo, tenho dificuldades de definir precisamente o que vem a ser um alvejante. No entanto, ainda estou à espera de uma boa explicação para o sorvete não estar na seção de “Frios & Congelados”.
Tocando neste assunto...
Neste último feriado, o mercado estava fechado e tive que ir a outro. Estava eu numa destas buscas pelo mercado, quando meus pensamentos se voltaram há muitos anos atrás, quando eu era criança e o meu pai me levava com ele para fazer as compras de mês. Lembrei que costumava ser divertido: a gente ficava com a lista de compras que a minha mãe preparava numa folha de caderno e a minha tarefa era cortar os itens que já haviam sido encontrados. Na minha santa ingenuidade, eu nunca cortava o item “danone”, na esperança de voltar a este item no futuro e terminar por comprar a quantidade dobrada. Não eliminava o item para caso o meu pai não acreditasse (corretamente) que já o havíamos pegado e então pedir para dar uma olhada na lista. Apesar de estratégia engenhosa, ela nunca funcionou.
Em seguida, percebi que esta fase durou até a adolescência, quando parei de ir ao mercado com o meu pai. Mais precisamente, parei de ir ao mercado em geral. Eu já não via muita graça de ficar andando no mercado cortando itens em uma lista, e muito menos graça em trocar o futebol com os amigos por uma tarde no mercado. Só me lembro de voltar a entrar num mercado quando saí da casa dos meus pais e fui estudar em outra cidade, morando em república com amigos.
A compra naquela época era bem diferente. Tanto em termos de processo, quanto de escopo. Primeiramente, não haviam itens a serem eliminados de uma lista. Até por que, nem lista de compras havia. O procedimento era muito simples: fazer um passeio por todos os corredores do mercado e jogar para dentro o que interessasse. A segunda diferença era no escopo. A compra de itens gerais para a casa, como material de limpeza, ficava a cargo de um amigo fazer, para centralizar em alguém a responsabilidade de conhecer o estoque da casa. Logo, tais itens nunca estavam no meu radar. Basicamente, a coisa funcionava assim: se eu batia o olho e achava que aquilo potencialmente era gostoso, eu comprava. Acho que no meu carrinho daquela época nunca entrou cenoura, alface, ou repolho. Se entrou, mofou na geladeira, porque eu nunca comi. Vergonhoso, eu sei. Espero que meu médico nunca leia este texto para não saber deste meu passado negro.
Incomodado pelo frio que comecei a sentir, retornei destes pensamentos e me vi perdido entre as prateleiras geladas de iogurte, ainda sem ter encontrado o papel toalha que estava procurando. Reparei só agora que eu havia voltado às origens: lista de compras na mão e itens sendo "ticados". Achei bacana ter me lembrado daquela época. Aproveitando que estava ali, peguei logo o que estava especificado de iogurte antes de voltar ao bendito do papel toalha. Eu já ia indo cortar o novo achado da minha lista, quando me contive. Retornei à busca sem cortar o iogurte. Naquele dia, o meu plano haveria enfim de funcionar.
O chato de buscar um produto pelo mercado é que esta tarefa exige algum instinto natural para descobrir onde ele está -- o que realmente estou longe de possuir. Aquelas placas com a indicação da seção de compras de cada corredor são de uma tamanha inutilidade. Confesso que em parte a culpa disso é minha, dada a minha ignorância de vários termos técnicos de itens do dia-a-dia. Por exemplo, tenho dificuldades de definir precisamente o que vem a ser um alvejante. No entanto, ainda estou à espera de uma boa explicação para o sorvete não estar na seção de “Frios & Congelados”.
Tocando neste assunto...
Neste último feriado, o mercado estava fechado e tive que ir a outro. Estava eu numa destas buscas pelo mercado, quando meus pensamentos se voltaram há muitos anos atrás, quando eu era criança e o meu pai me levava com ele para fazer as compras de mês. Lembrei que costumava ser divertido: a gente ficava com a lista de compras que a minha mãe preparava numa folha de caderno e a minha tarefa era cortar os itens que já haviam sido encontrados. Na minha santa ingenuidade, eu nunca cortava o item “danone”, na esperança de voltar a este item no futuro e terminar por comprar a quantidade dobrada. Não eliminava o item para caso o meu pai não acreditasse (corretamente) que já o havíamos pegado e então pedir para dar uma olhada na lista. Apesar de estratégia engenhosa, ela nunca funcionou.
Em seguida, percebi que esta fase durou até a adolescência, quando parei de ir ao mercado com o meu pai. Mais precisamente, parei de ir ao mercado em geral. Eu já não via muita graça de ficar andando no mercado cortando itens em uma lista, e muito menos graça em trocar o futebol com os amigos por uma tarde no mercado. Só me lembro de voltar a entrar num mercado quando saí da casa dos meus pais e fui estudar em outra cidade, morando em república com amigos.
A compra naquela época era bem diferente. Tanto em termos de processo, quanto de escopo. Primeiramente, não haviam itens a serem eliminados de uma lista. Até por que, nem lista de compras havia. O procedimento era muito simples: fazer um passeio por todos os corredores do mercado e jogar para dentro o que interessasse. A segunda diferença era no escopo. A compra de itens gerais para a casa, como material de limpeza, ficava a cargo de um amigo fazer, para centralizar em alguém a responsabilidade de conhecer o estoque da casa. Logo, tais itens nunca estavam no meu radar. Basicamente, a coisa funcionava assim: se eu batia o olho e achava que aquilo potencialmente era gostoso, eu comprava. Acho que no meu carrinho daquela época nunca entrou cenoura, alface, ou repolho. Se entrou, mofou na geladeira, porque eu nunca comi. Vergonhoso, eu sei. Espero que meu médico nunca leia este texto para não saber deste meu passado negro.
Incomodado pelo frio que comecei a sentir, retornei destes pensamentos e me vi perdido entre as prateleiras geladas de iogurte, ainda sem ter encontrado o papel toalha que estava procurando. Reparei só agora que eu havia voltado às origens: lista de compras na mão e itens sendo "ticados". Achei bacana ter me lembrado daquela época. Aproveitando que estava ali, peguei logo o que estava especificado de iogurte antes de voltar ao bendito do papel toalha. Eu já ia indo cortar o novo achado da minha lista, quando me contive. Retornei à busca sem cortar o iogurte. Naquele dia, o meu plano haveria enfim de funcionar.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
O pedreiro que sabia demais
Era dia de prova de matemática na minha escola. O humor dos alunos se assemelhava muito com o dia chuvoso e cinzento que fazia lá fora. Eu estava na sexta-série do ginásio. Pela menção a 'ginásio', já se nota quanto tempo isso faz. A nomenclatura dos anos escolares mudou tanto desde então, que imagino que em breve os textos contendo esta palavra virão acompanhados de nota de rodapé, explicando: "(1) Ginásio: termo utilizado no final do século XX para se referir ao período escolar compreendido entre os anos quinto e oitavo pós-alfabetização".
Eu sempre tive muita facilidade com números. Existe um lado bom desta habilidade que é diferente em cada estágio de vida. O daquela época era que podia-se terminar a prova muito cedo e sair para o pátio, esperando os demais terminarem. Resultava, portanto, no benefício de se ter um segundo recreio, mais tempo para se brincar com os amigos (com alguns deles ao menos, dado que a maioria ficava agarrada fazendo a prova). A brincadeira padrão daquela época era futebol mas naquele dia, devido à água que descia do céu, ficamos no pátio coberto jogando conversa fora. Naturalmente, como toda conversa após uma prova, o papo logo se concentrou na discussão das questões.
Uma das questões gerou polêmica. Cada um tinha uma solução diferente, e um não conseguia convencer o outro de que sua solução era a correta. Como matemática se visualiza melhor no papel, procuramos algo com o que escrever para melhor discutirmos. Havia uma obra em andamento na escola e, perto da montanha de tijolos empilhados, encontramos alguns quebrados e pudemos usar algumas de suas lascas para escrever no chão. Qualquer criança já desenhou na rua com lascas de tijolos, creio eu, e portanto acredito que podem imaginar, de maneira muito precisa, a cena de várias crianças fazendo um monte de equações no chão.
Em meio a discussão, um pedreiro que estava trabalhando nas obras se aproximou.
-- Crianças, estive escutando vocês, posso me intrometer?
Gelamos. Não era para se pegar aquelas lascas de tijolos da pilha! Com certeza ia ter bronca. Talvez teríamos que além disso apagar o chão com baldes de água e esponja. O pedreiro continuou:
-- Acho que há um mal entendido. A questão pede para calcular o tempo que se leva para uma pessoa a superfície escutar uma pedra jogada ao fundo de um poço. Logo, deve-se considerar o tempo de queda da pedra, uma função inversamente quadrática em relação a sua altura, além do tempo de retorno do som ao ouvido da pessoa, que aí sim é uma função linear. Desde forma, -- neste momento, tomou a lasca de tijolo da mão de meu colega -- as equações de interesse podem ser assim descritas...
E assim ele continuou. Resolveu o problema no chão. Mostrou que haviam duas maneiras de resolver a questão. Achou graça em alguns aspectos da pergunta e de como ela nos enganou. Enquanto isso, todos estávamos paralisados. A ideia de um pedreiro fazendo aquilo era como se víssemos leite sendo derramado para cima, desafiando a gravidade. Era uma experiência diferente de todas as que já tínhamos tido na vida (que era curta naquele tempo, sem dúvidas, mas igualmente impactante se isto tivesse ocorrido hoje). Ele então percebeu que a chuva tinha parado e disse meio que mudando de assunto:
-- Crianças, preciso voltar ao trabalho, até mais!
Como não respondemos, ele achou estranho e em seguida concluiu o que de fato estava se passando nas nossas cabeças. Pensou um pouco e comentou antes de retomar suas obrigações:
-- Eu gostava muito de matemática. Meu pai era pedreiro, acabei seguindo seu caminho. Dá um bom dinheiro, ainda mais para quem não teve oportunidade de continuar estudando. Mas eu digo para vocês: se eu tivesse continuado, poderia ser engenheiro, igual aquele que vem aqui de vez em quando acompanhar a obra. Mas querem saber de uma coisa? Ser pedreiro é legal. Eu gosto de construir coisas. Assim como eu gostava da matemática.
E se foi. E, junto com ele, as nossas pré-concepções sobre o mundo.
Tocando neste assunto...
Estes dias escutei algo que não escutava desde a infância. Uma mãe disse ao filho, que julgo estar reclamando de ir a escola, que "quem não estuda vira lixeiro". A resposta mais adequada a esta sentença, na minha opinião, seria "E daí?".
Aquele pedreiro me ensinou que podemos até julgar um livro pela capa. Mas que façamos isso apenas com livros.
Eu sempre tive muita facilidade com números. Existe um lado bom desta habilidade que é diferente em cada estágio de vida. O daquela época era que podia-se terminar a prova muito cedo e sair para o pátio, esperando os demais terminarem. Resultava, portanto, no benefício de se ter um segundo recreio, mais tempo para se brincar com os amigos (com alguns deles ao menos, dado que a maioria ficava agarrada fazendo a prova). A brincadeira padrão daquela época era futebol mas naquele dia, devido à água que descia do céu, ficamos no pátio coberto jogando conversa fora. Naturalmente, como toda conversa após uma prova, o papo logo se concentrou na discussão das questões.
Uma das questões gerou polêmica. Cada um tinha uma solução diferente, e um não conseguia convencer o outro de que sua solução era a correta. Como matemática se visualiza melhor no papel, procuramos algo com o que escrever para melhor discutirmos. Havia uma obra em andamento na escola e, perto da montanha de tijolos empilhados, encontramos alguns quebrados e pudemos usar algumas de suas lascas para escrever no chão. Qualquer criança já desenhou na rua com lascas de tijolos, creio eu, e portanto acredito que podem imaginar, de maneira muito precisa, a cena de várias crianças fazendo um monte de equações no chão.
Em meio a discussão, um pedreiro que estava trabalhando nas obras se aproximou.
-- Crianças, estive escutando vocês, posso me intrometer?
Gelamos. Não era para se pegar aquelas lascas de tijolos da pilha! Com certeza ia ter bronca. Talvez teríamos que além disso apagar o chão com baldes de água e esponja. O pedreiro continuou:
-- Acho que há um mal entendido. A questão pede para calcular o tempo que se leva para uma pessoa a superfície escutar uma pedra jogada ao fundo de um poço. Logo, deve-se considerar o tempo de queda da pedra, uma função inversamente quadrática em relação a sua altura, além do tempo de retorno do som ao ouvido da pessoa, que aí sim é uma função linear. Desde forma, -- neste momento, tomou a lasca de tijolo da mão de meu colega -- as equações de interesse podem ser assim descritas...
E assim ele continuou. Resolveu o problema no chão. Mostrou que haviam duas maneiras de resolver a questão. Achou graça em alguns aspectos da pergunta e de como ela nos enganou. Enquanto isso, todos estávamos paralisados. A ideia de um pedreiro fazendo aquilo era como se víssemos leite sendo derramado para cima, desafiando a gravidade. Era uma experiência diferente de todas as que já tínhamos tido na vida (que era curta naquele tempo, sem dúvidas, mas igualmente impactante se isto tivesse ocorrido hoje). Ele então percebeu que a chuva tinha parado e disse meio que mudando de assunto:
-- Crianças, preciso voltar ao trabalho, até mais!
Como não respondemos, ele achou estranho e em seguida concluiu o que de fato estava se passando nas nossas cabeças. Pensou um pouco e comentou antes de retomar suas obrigações:
-- Eu gostava muito de matemática. Meu pai era pedreiro, acabei seguindo seu caminho. Dá um bom dinheiro, ainda mais para quem não teve oportunidade de continuar estudando. Mas eu digo para vocês: se eu tivesse continuado, poderia ser engenheiro, igual aquele que vem aqui de vez em quando acompanhar a obra. Mas querem saber de uma coisa? Ser pedreiro é legal. Eu gosto de construir coisas. Assim como eu gostava da matemática.
E se foi. E, junto com ele, as nossas pré-concepções sobre o mundo.
Tocando neste assunto...
Estes dias escutei algo que não escutava desde a infância. Uma mãe disse ao filho, que julgo estar reclamando de ir a escola, que "quem não estuda vira lixeiro". A resposta mais adequada a esta sentença, na minha opinião, seria "E daí?".
Aquele pedreiro me ensinou que podemos até julgar um livro pela capa. Mas que façamos isso apenas com livros.
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