Era dia de prova de matemática na minha escola. O humor dos alunos se assemelhava muito com o dia chuvoso e cinzento que fazia lá fora. Eu estava na sexta-série do ginásio. Pela menção a 'ginásio', já se nota quanto tempo isso faz. A nomenclatura dos anos escolares mudou tanto desde então, que imagino que em breve os textos contendo esta palavra virão acompanhados de nota de rodapé, explicando: "(1) Ginásio: termo utilizado no final do século XX para se referir ao período escolar compreendido entre os anos quinto e oitavo pós-alfabetização".
Eu sempre tive muita facilidade com números. Existe um lado bom desta habilidade que é diferente em cada estágio de vida. O daquela época era que podia-se terminar a prova muito cedo e sair para o pátio, esperando os demais terminarem. Resultava, portanto, no benefício de se ter um segundo recreio, mais tempo para se brincar com os amigos (com alguns deles ao menos, dado que a maioria ficava agarrada fazendo a prova). A brincadeira padrão daquela época era futebol mas naquele dia, devido à água que descia do céu, ficamos no pátio coberto jogando conversa fora. Naturalmente, como toda conversa após uma prova, o papo logo se concentrou na discussão das questões.
Uma das questões gerou polêmica. Cada um tinha uma solução diferente, e um não conseguia convencer o outro de que sua solução era a correta. Como matemática se visualiza melhor no papel, procuramos algo com o que escrever para melhor discutirmos. Havia uma obra em andamento na escola e, perto da montanha de tijolos empilhados, encontramos alguns quebrados e pudemos usar algumas de suas lascas para escrever no chão. Qualquer criança já desenhou na rua com lascas de tijolos, creio eu, e portanto acredito que podem imaginar, de maneira muito precisa, a cena de várias crianças fazendo um monte de equações no chão.
Em meio a discussão, um pedreiro que estava trabalhando nas obras se aproximou.
-- Crianças, estive escutando vocês, posso me intrometer?
Gelamos. Não era para se pegar aquelas lascas de tijolos da pilha! Com certeza ia ter bronca. Talvez teríamos que além disso apagar o chão com baldes de água e esponja. O pedreiro continuou:
-- Acho que há um mal entendido. A questão pede para calcular o tempo que se leva para uma pessoa a superfície escutar uma pedra jogada ao fundo de um poço. Logo, deve-se considerar o tempo de queda da pedra, uma função inversamente quadrática em relação a sua altura, além do tempo de retorno do som ao ouvido da pessoa, que aí sim é uma função linear. Desde forma, -- neste momento, tomou a lasca de tijolo da mão de meu colega -- as equações de interesse podem ser assim descritas...
E assim ele continuou. Resolveu o problema no chão. Mostrou que haviam duas maneiras de resolver a questão. Achou graça em alguns aspectos da pergunta e de como ela nos enganou. Enquanto isso, todos estávamos paralisados. A ideia de um pedreiro fazendo aquilo era como se víssemos leite sendo derramado para cima, desafiando a gravidade. Era uma experiência diferente de todas as que já tínhamos tido na vida (que era curta naquele tempo, sem dúvidas, mas igualmente impactante se isto tivesse ocorrido hoje). Ele então percebeu que a chuva tinha parado e disse meio que mudando de assunto:
-- Crianças, preciso voltar ao trabalho, até mais!
Como não respondemos, ele achou estranho e em seguida concluiu o que de fato estava se passando nas nossas cabeças. Pensou um pouco e comentou antes de retomar suas obrigações:
-- Eu gostava muito de matemática. Meu pai era pedreiro, acabei seguindo seu caminho. Dá um bom dinheiro, ainda mais para quem não teve oportunidade de continuar estudando. Mas eu digo para vocês: se eu tivesse continuado, poderia ser engenheiro, igual aquele que vem aqui de vez em quando acompanhar a obra. Mas querem saber de uma coisa? Ser pedreiro é legal. Eu gosto de construir coisas. Assim como eu gostava da matemática.
E se foi. E, junto com ele, as nossas pré-concepções sobre o mundo.
Tocando neste assunto...
Estes dias escutei algo que não escutava desde a infância. Uma mãe disse ao filho, que julgo estar reclamando de ir a escola, que "quem não estuda vira lixeiro". A resposta mais adequada a esta sentença, na minha opinião, seria "E daí?".
Aquele pedreiro me ensinou que podemos até julgar um livro pela capa. Mas que façamos isso apenas com livros.
O mundo era perfeito
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